Toda honra ao doutor

O gosto pelo estudo acabou levando Cristiano Santos Araújo, 43, a ser o primeiro da sua família a concluir um curso de graduação. Anos depois do primeiro feito, o agora doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás comemora uma das maiores honrarias para pesquisadores no Brasil: o reconhecimento no Prêmio Capes de Tese. Nesta edição, sua tese, defendida no ano passado, foi agraciada com menção honrosa, considerada um dos três melhores trabalhos doutorais em ciências da religião e teologia em todo o país. Na lista completa, considerando todas as áreas e posições, a tese de Cristiano é a única de uma instituição goiana.

“Eu fiquei contente e surpreso”, diz, ao lembrar de quando recebeu a notícia por e-mail, no dia 1º de outubro. A informação foi confirmada em publicações no site da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e no Diário Oficial. “É especial porque tenho consciência de que não é uma coisa minha, é representativo isso”, reflete, ao lembrar que nenhuma universidade goiana acompanha a PUC Goiás na lista e são poucas as instituições do Centro-Oeste.

A menção honrosa foi também comemorada pelos professores que acompanharam Cristiano em toda sua trajetória doutoral, desde 2014. “A essência desse prêmio é que aquilo que pesquisamos está sendo entendido como atual e de qualidade, entre os melhores do país”, avalia o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Clóvis Ecco, que também foi um dos responsáveis pela inscrição de Cristiano na premiação. “Ele me enviou um e-mail assim que o edital saiu, pedindo para arrumar a documentação necessária”, lembra o pesquisador.

Tese premiada

Em 248 páginas, o trabalho investiga nuances da escrita do autor que encantou Cristiano ainda na graduação: João Guimarães Rosa. Analisando elementos já utilizados pelo jovem Guimarães Rosa, em 1930, no conto Chronos kai Anagké, e pelo grande Guimarães Rosa, em 1956, no seu único romance Grande Sertão: Veredas, o pesquisador analisou o testemunho do sagrado na narrativa roseana, apontando o autor como um forte representante da construção brasileira do sagrado, não só na literatura como na cultura do país.

No conto, que foi premiado e publicado pela revista O Cruzeiro na década de 1930, a história de um jogador profissional de xadrez é contada em uma narrativa fantástica, em que o jogo é uma ferramenta de poder ainda não decifrada pela humanidade. A partir do que parecia ser uma alucinação, o jogador se encontra com Deus e o Demo, que conduzem a humidade em uma grande partida. A ideia do bem e do mal jogando em um tabuleiro e tendo o ser humano como peça mostra, segundo Cristiano, a sabedoria de um jovem Rosa, que aos 22 anos, em Minas Gerais, já se utilizava da base teórica do zoroastrismo, que é anterior à lógica judaico-cristã. “Quem está nas peças do tabuleiro é o ser humano. E é isso que ele vai mostrar também em seu romance. Deus e o mal em um grande tabuleiro que é o sertão. Não apenas o de Minas Gerais, mas o sertão brasileiro”, frisa.

No trabalho, Cristiano analisa e explora diversas hipóteses. Entre elas, a de que a literatura traz vestígios de um povo e seu contexto. “Quando a gente pensa em ficção a gente pensa em mentira, mas não, a obra de ficção pode ir além da verdade e da mentira. A literatura, apesar de ser obra de ficção, pode ser sim uma forma de acervo, registro de uma época na sociedade. A literatura não explica tudo, mas pode ajudar a explicar algo. Assim como os discursos da história e da filosofia”, defende.

A tese, intitulada Chronos kai Anagké: Vestígios do Sagrado em João Guimarães Rosa, surgiu das inquietações iniciais de Cristiano, mas ganhou corpo a partir das aulas no programa e dos direcionamentos dados pelo professor orientador Gilberto Gonçalves Garcia. “Preciso agradecer e reconhecer que, sem ele, não haveria essa tese. Ele tem uma capacidade enorme de conduzir caminhos, de propor alternativas, de ler. Ele leu o meu trabalho mesmo, de verdade, várias vezes, entre vírgulas e tudo. O trabalho sempre voltou cheio de considerações, e olha que eu escrevo bem”, brinca.

Para a construção do trabalho, o pesquisador confessa não ter tido grandes dificuldades ou crises ligadas à escrita, algo que ama fazer e faz naturalmente. Sem traumas, Cristiano lembra de dificuldades relacionadas apenas nos cortes e recortes sugeridos pelo orientador e pela banca de qualificação, além da dificuldade inicial de debater a pesquisa com o orientador. Os encontros na universidade, em restaurantes, e em diversos espaços, além das orientações on-line deram lugar à segurança na construção da pesquisa, no entanto. “Eu realmente encontrei alguém que encaixou muito e deu super certo”.

Travessias

Imediatamente após defender a tese doutoral, em agosto de 2017, Cristiano se afastou de leituras acadêmicas e de literatura. Não que tenha sido intencional, mas a carga trazida pela pesquisa motivou o afastamento. Seis meses depois, já estava mergulhado nos livros para construir dois novos projetos: um para um novo doutorado, em Letras, estudando as amarras entre a literatura e o samba carioca, e outro para um estágio pós-doutoral, também em Letras, dando seguimento nos estudos da literatura roseana. Até o momento, ainda não se decidiu qual dos dois será o próximo passo. “Eu gosto de ler com a intencionalidade de produção de pesquisas também”, frisa.

De fato, a facilidade para a produção foi um dos destaques de sua travessia pelo sertão doutoral. Além de artigos científicos e a apresentação de trabalhos pelo país, participou da autoria de outros oito livros, com diversos professores do programa de pós-graduação. A facilidade de articulação e produção o motivou, inclusive, a ajudar a construir uma plataforma de captação e publicação para os seus colegas discentes que estavam enfrentando dificuldades para publicar. A união entre os pesquisadores que estudaram nos cursos de mestrado e doutorado do programa resultou em três livros organizados por Cristiano, sob o nome de “Instruçados”. O termo nasceu da brincadeira de um dos professores, que ressaltou em sala que a turma era composta por profissionais, pesquisadores e intelectuais de diversas áreas, “gente instruçada”. “Cada livro teve o prefácio de um dos professores, e todos contaram com a permissão do programa. Os professores apoiaram como algo que realmente pudesse dar esse acesso aos alunos”, lembra.

Aos oito livros publicados ao longo do doutorado, somam-se outros quatro livros anteriores. Cristiano, que se encontrou na docência e hoje é professor em faculdades da região metropolitana de Goiânia, pretende lançar o próximo livro logo mais: uma adaptação de sua tese. A menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2018, confessa ele, deu um novo ânimo para que seus estudos possam ressoar e contribuir para as discussões da área dos estudos das ciências da religião no Brasil. “Recebi várias mensagens de outros candidatos ao prêmio, de professores da área, de acadêmicos de várias regiões do país. É uma visibilidade muito bacana”.

O próximo passo acadêmico, sendo ou não um olhar para a obra de Guimarães Rosa, a qual ele analisa desde a graduação, vai ser acompanhada de perto por pesquisadores, professores e amigos. Grande Sertão: Veredas, contudo, não deve ser deixado de lado. “Ainda leio com prazer. Já li umas 12 vezes e ainda me surpreendo”.