Motivação e Justificativa

Boa parte da população mundial vive hoje em democracias formais. Mas tanto nas democracias estabelecidas do eixo norte do planeta quanto nas mais recentes do eixo sul, a confiança nos parlamentos, nos partidos e nas formas de representação política vive uma crise profunda. Em boa parte do mundo, e não apenas no Brasil, as sociedades estão dilaceradas por desigualdades econômicas e sociais, por uma forte polarização política, quando não por uma cultura política de ódio e por uma pregação aberta contra direitos humanos e sociais duramente conquistados. Por toda parte grupos de direita ou de extrema-direita estão usando as ruas, os tribunais e as próprias urnas para desafiar não apenas as autoridades e as instituições formais da democracia burguesa, mas o próprio ideal de democracia. Desde a Índia, Rússia, Hungria, Turquia, passando por Alemanha, França, Estados Unidos até o Brasil a forma, o conteúdo, as instituições, as práticas e, em última análise, os próprios princípios da democracia liberal estão sendo questionados. O sistema capitalista parece não precisar mais de regimes democráticos e estar gestando formas autoritárias e subservientes de governo que lhe sejam mais eficientes. Em alguns contextos a militância de grupos autoritários e neofascistas se torna quase uma forma de religião. Formas recicladas de fascismo – considerado um evento do passado por alguns – aparecem em nova roupagem e em contextos inesperados. Como na era Trump, tais grupos e lideranças políticas usam as instituições, práticas e formas de representação democrática para erodir, se possível acabar com a democracia formal e estabelecer-se de forma duradoura no poder. Como no Brasil pós-Bolsonaro, tais grupos e lideranças políticas de recorte filo-fascista não desaparecem ao serem derrotados nas eleições. Esse não é um problema de natureza apenas político-eleitoral, que se resolveria com a eleição de candidatos alternativos, de centro ou de esquerda.

Economicamente os grupos neofascistas, de forma diferente do fascismo clássico, defendem propostas de cunho ultra-liberal, mas continuam apostando na violência, no nacionalismo, no racismo e na centralização autoritária do poder, enquanto acumulam uma formidável competência na guerra ideológica, estabelecendo centros de produção e redes capilares de divulgação de fake news, boatos, dados falsos, ódio e preconceitos. As propostas autoritárias parecem seduzir de forma duradoura uma parcela não desprezível da população, que sob determinadas circunstâncias – como na Alemanha o partido neonazista AfD, ou no

Brasil o bolsonarismo – pode crescer e impactar significativamente os rumos da sociedade. Entre nós o bolsonarismo mantém uma cota relativamente estável de adeptos, o que é forte indício de que o movimento tende a sobreviver à trajetória política das figuras que lhe deram origem.

A cultura autoritária presente na sociedade brasileira não é nova, mas recebeu relativamente pouca atenção dos estudiosos da religião. Há excelentes análises por parte de sociólogos e antropólogos da religião dos recentes processos eleitorais e do papel na política dos grupos religiosos pentecostais ou católicos ou espíritas, mas faltam estudos que abordem o papel dos elementos religiosos na constituição e na manutenção de uma cultura do autoritarismo e mesmo do fascismo no Brasil. Também faz falta um quadro explicativo e analítico que leve em conta a interação dos fatores religiosos endógenos, que marcam historicamente a formação patriarcal e autoritária da sociedade brasileira, com fatores religiosos exógenos recentes, como o fundamentalismo religioso resultante das reações aos processos de globalização capitalista, que impactam e ajudam a reformatar a prática política e social autoritária de grupos religiosos locais. Afinal, em contextos de elevada tensão social como no brasileiro, existe algum nexo ou relação entre a cultura política autoritária e a tradição religiosa vividas no passado e as novas formas de fascismo apoiadas e cultivadas por novos agentes religiosos e políticos? Em que medida circulam no contexto global concepções político-religiosas disseminadas por grupos influentes de ultra-direita e como impactam ou se mesclam tais interesses com projetos de poder de grupos religiosos e políticos locais?

A essa e a outras indagações do gênero o IV Colóquio Internacional do Núcleo de Estudos Avançados em Religião e Globalização do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Goiás, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco,  a Editora Vozes, com o Centro de Estudos da Religião da Universidade Federal de Goiás, busca dar resposta. Durante três dias especialistas brasileiros e estrangeiros, pesquisadores das mais diversas áreas e pertinências teóricas, estarão voltados para o estudo e o debate sobre as formas de imbricação e mútua implicação entre a religião (sobretudo na forma das igrejas cristãs) e o autoritarismo e o fascismo.

Temas a serem abordados

  • Fascismo e religião no capitalismo globalizado

  • A questão conceitual: autoritarismo, totalitarismo, fascismo, nazismo

  • Mobilização autoritária, secularização e pós-fascismo

  • O autoritarismo brasileiro e suas conexões religiosas nos anos 1920-30

  • Fascismo e religião na Itália – de Mussolini até o presente

  • Fascismo e religião na Alemanha – de Hitler até o presente

  • Fascismo e religião na Espanha

  • O fascismo bolsonarista e os grupos religiosos (católicos, evangélicos, espíritas) no Brasil atual.

  • Fundamentalismo religioso e fascismo na América Latina e no Brasil

  • Constelação autoritária e religião na sociedade contemporânea